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Direito do Consumidor

CONDOMÍNIO: Como ficam os adquirentes de um imóvel na planta diante de um pedido de Recuperação Judicial do Incorporador?

CONDOMÍNIO: Como ficam os adquirentes de um imóvel na planta diante de um pedido de Recuperação Judicial do Incorporador?

Caríssimos a Lei de Falências e Recuperações Judiciais, que completou pouco mais de uma década de existência, refletiu uma grande mudança no panorama jurídico brasileiro, especialmente por prestigiar, ao contrário do DL nº 4661/45, a vontade dos credores no âmbito do procedimento concursal.

Contudo, é inegável que a complexa pluralidade de casuísticas que a cada dia se aperfeiçoa no âmbito do direito empresarial contemporâneo não foi passível de exaurimento na Lei nº 11.101/05, sobretudo no âmbito Recuperacional.

Uma dessas situações é referente a questão do patrimônio de afetação tratado na Lei de Incorporação Imobiliária.

Seria ele passível de integrar o bojo de uma Recuperação Judicial?Como ficaria a recuperação de um grupo de empresas que são deles dependentes, sobretudo numa modalidade de consolidação processual ou substancial? Como ficariam os adquirentes de frações ideais diante da má gestão ou crise financeira do incorporador?

Em que pese haver previsão proibitiva quanto a sua integração no procedimento falencial tal situação recentemente foi abordada pelo Juiz da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo/Capital e Professor de Direito Empresarial da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Dr. Marcelo Barbosa Sacramone, ao proferir decisão nos autos do incidente de Habilitação de Crédito de procedimento Recuperacional de um grupo de empresas, a qual colaciono a seguir dada a escassa (ou inexistente) manifestação acerca do assunto:

“O empreendimento XXXXX teve início em maio de 2013 com a aquisição dos terrenos. A sociedade de propósito específico foi constituída meses depois, em agosto de 2013. Em setembro de 2015 foi registrada a incorporação imobiliária, com a especificação das unidades do empreendimento. No mesmo mês de setembro de 2015 foi registrado patrimônio de afetação na matrícula do empreendimento, antes, portanto, da distribuição do pedido de recuperação judicial, realizado em 18 de dezembro de 2015.

Pois bem. A primeira questão a ser enfrentada versa sobre a possibilidade de inserção do patrimônio de afetação na recuperação judicial, eis que a possibilidade de consolidação processual ou substancial são desta dependentes. Nesse ponto, assiste razão ao ilustre parecerista.

O artigo 31-F da Lei nº 4.591/64, em concordância ao artigo 119, IX, da Lei nº 11.101/05, excluem o patrimônio de afetação dos efeitos da decretação da falência:

Art. 31-F. Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação.

Art. 119, IX. Os patrimônios de afetação, constituído para cumprimento da destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.

A exclusão do patrimônio de afetação da falência é decorrência da própria conceituação do instituto, formulado como resposta à lesão patrimonial histórica sofrida por vários adquirentes de unidades em razão de má gestão do incorporador.

Para Orlando Gomes, a afetação “consiste numa restrição pela qual determinados bens se dispõem, para servir a fim desejado, limitando-se, por este modo, a ação dos credores”[1]. Conforme disserta José Marcelo Tossi Silva, “com a instituição do patrimônio de afetação, pretende-se criar condições para que os adquirentes das frações ideais vinculadas às unidades autônomas a construir não fiquem sujeitos a eventuais percalços financeiros que possam atingir o incorporador, sejam eles decorrentes de má gestão de seus negócios ou de outros fatores que possam acarretar a insolvência ou falência, ou possam retirar do incorporador as condições econômicas necessárias para concluir a incorporação” [2].

A afetação de parcela do patrimônio do devedor a determinada finalidade impede que referido patrimônio seja contaminado ou sofra efeitos das demais obrigações contraídas por aquele devedor. Na conceituação do art. 31-A, “o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados” serão mantidos apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.

Segundo Sérgio Campinho, “esse patrimônio separado, que se constitui mediante averbação, a qualquer tempo, no Registro de Imóveis, de termo firmado pelo incorporador, não se comunica com os demais bens, direitos e obrigação de seu patrimônio geral ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”[3].

Diante da falência do devedor, desta forma, o patrimônio separado continua afetado à consecução da incorporação imobiliária e não será partilhado entre os demais credores. O patrimônio separado não integra a massa falida objetiva a ser liquidada para a satisfação da coletividade dos credores do devedor. Sua afetação restringe-se à entrega das unidades aos adquirentes.

Se o patrimônio de afetação foi instituído justamente para evitar que os adquirentes das unidades sofressem com a má gestão do incorporador e com a possibilidade de constrição sobre o empreendimento em razão de débitos não diretamente correlacionados às unidades, o instituto também deverá ser aplicado analogicamente à recuperação judicial, embora inexista referência expressa a essa.

A falta de condições econômicas necessárias para concluir a incorporação é justamente o que motivaria o empresário a requerer a recuperação judicial para submeter as relações jurídicas afetadas ao patrimônio de afetação a novo regime jurídico conforme proposto no plano de recuperação judicial.

Essa autonomia do incorporador para alterar as condições das relações jurídicas relacionadas ao empreendimento, contudo, foi suprimida pela Lei especial de incorporação imobiliária, que submeteu qualquer alteração do empreendimento à vontade da maioria absoluta do voto dos adquirentes das unidades. Após a instituição do patrimônio de afetação, o incorporador deverá manter os bens e direitos objetos da incorporação apartados; não poderá se utilizar os recursos capitados para fins diversos; os próprios demonstrativos do estado da obra devem correspondem aos recursos financeiros e quaisquer modificações propostas pelo incorporador devem ser aprovadas pelos adquirentes.

A supressão da autonomia decisória é ainda mais expressa nos art. 31-F, §§1º e 2º, c. C. Art. 43, VI, da Lei 4581/1964. Nesses está previsto que a mera paralização da obra ou retardo permitirá aos adquirentes, por maioria absoluta, prosseguir nas obras em detrimento do incorporador, com a instituição do condomínio da construção. Se a eles foi garantida essa autonomia por ocasião da mera paralização, o mesmo poder deve ser também atribuído por ocasião de situação mais gravosa, como alteração nas próprias relações jurídicas.

A novação das relações jurídicas dos adquirentes afetadas à incorporação imobiliária, nesses termos, não poderá ser realizada em Assembleia Geral de que participem todos os credores relacionados ao devedor, nem pelo quórum qualificado de maioria dos presentes de cada classe, como previsto na Lei Falimentar, no art. 45.

Os demais credores não adquirentes das unidades, por seu turno, como prestadores de serviços, etc, têm suas obrigações garantidas em relação aos demais ativos. Pela Lei de incorporação imobiliária, ademais, caso os adquirentes decidam prosseguir com a continuidade da obra, ficarão sub-rogados nas obrigações e encargos da incorporação, aos quais, assim, serão direcionados os créditos dos demais credores não adquirentes (art. 31-F, §§11 e 12).

Desta forma, afetado o patrimônio, a modificação de suas relações jurídicas submete-se a regime especial não compatível com o procedimento da recuperação judicial. Isto posto, o patrimônio de afetação não se submete à recuperação judicial.

A exclusão do patrimônio de afetação da recuperação judicial não necessariamente implica a exclusão da própria possibilidade de a pessoa jurídica empresária requerer a recuperação judicial para pretender a novação das demais obrigações não diretamente relacionadas ao empreendimento afetado.

No presente caso, contudo, a pessoa jurídica criada para o desenvolvimento foi uma Sociedade limitada, mas na forma de Sociedade de Propósito Específico (SPE), pessoa jurídica criada como forma, cumulativa ou não, para separar as relações jurídicas ligadas ao fim que motivou sua criação. No caso da incorporação imobiliária, a SPE permitiria, pela autonomia patrimonial da pessoa jurídica e restrição de seu objeto social, uma forma societária para isolar as relações jurídicas ligadas ao empreendimento imobiliário das demais relações jurídicas do incorporador/sócio.

Como a SPE do presente caso tem todo o conjunto de suas relações jurídicas delimitado justamente ao empreendimento imobiliário, de modo a preencher o seu fim de isolamento com as demais relações jurídicas dos envolvidos, e considerando-se que esse conjunto de relações foi caracterizado como patrimônio de afetação e não se submete à recuperação judicial, não há utilidade em permitir a recuperação judicial dessa própria Sociedade de Propósito Específico.

Isso posto, acolho o pedido para excluir o patrimônio de afetação da recuperação judicial, bem como para excluir a sociedade XXXXX Incorporações SPE Ltda. Do polo ativo do presente processo de recuperação judicial.”

* Autos nº 0036581-49.2016.8.26.0100, 2ª. VFRJ Capital – TJSP *

Neste sentido temos que não só pelas exímias palavras do Prof. Sacramone, como também, pelos ditames teleológicos da Lei 8.078/90 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor) o adquirente se vê preservado em seus direitos com tratamento diferenciado diante de eventual hipótese de superação da crise pela empresa Incorporadora.

 


[1] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, 15ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 203.

[2] SILVA, José Marcelo Tossi Silva. Incorporação Imobiliária, São Paulo, Atlas, 2010, p. 173.

[3] CAMPINHO, Sério. Falência e Recuperação de Empresa – O novo regime de insolvência empresarial, 2ª ed., Renovar, 2006, p. 351.